Um pica-pau adulto consegue martelar uma árvore, até 20 vezes por segundo, a uma velocidade de 7m/s. Ao final de um dia de caçada por larvas e insetos, esta ave pode chegar a incrível marca de 12.000 picadas!
Quando bate na madeira, o bico do pica-pau desacelera instantaneamente a uma taxa de 1.200 g ou 1.200 vezes a força da gravidade. Tudo isso com pouco ou nenhum dano cerebral (YOON, 2011).
Para se ter uma ideia, uma pessoa saudável consegue tolerar de 2 a 3 g em um brinquedo de parque de diversões, enquanto um piloto de caça treinado pode suportar até 9 g por 2 segundos, utilizando trajes especiais (ZHANG, 2004).
Mas afinal, quais são os fatores que permitem que os pica-paus consigam bater em árvores sem danificar seus cérebros?
A língua do pica-pau e o aparelho hióide
O aparelho hióide é, certamente, o mecanismo mais fascinante dos pica-paus. Ele é uma estrutura de cartilagem, osso e músculos muito longa que se liga à base da língua da ave e possui duas funções importantíssimas.
Primeiro, ele serve como uma extensão da língua, fazendo com que ela seja maior que a de outras aves, o que facilita sua caçada em fendas atrás de insetos e larvas.
Segundo, como este mecanismo possui segmentos com núcleos ósseos cobertos por uma cartilagem, quando uma pancada, proveniente de uma bicada em uma árvore, atinge essa “língua óssea”, a energia do impacto é transferida para ela, funcionando, como uma espécie de amortecedor.
Essa estrutura evoluiu de uma forma bem inteligente e curiosa para conseguir achar espaço na cabeça da ave. Inicialmente, ela se projeta da base da língua até a garganta. A partir daí, o aparelho hióide se divide em dois ramos em forma de “Y”, passando por bainhas existentes entre o músculo e a pele. Em seguida, vai da garganta até o pescoço, passando por trás e depois por cima do crânio, terminando, normalmente, na narina direita.
A língua do pica-pau pode chegar a 2/3 do tamanho do seu corpo, dependendo da espécie (MAY, 1976).
Estrutura de apoio do pica-pau
Outro fator importante que permite ao pica-pau bater forte na madeira é a sua estrutura de apoio extremamente poderosa, que se assemelha a um tripé, composto por duas pernas fortes e uma cauda rígida.
Cada pé possui dois dedos para frente, e dois para trás, que garantem firmeza, ao se segurar na casca das árvores.
Essa base garante que a ave possa afastar seu bico para longe da árvore e atirá-lo de forma firme e acelerada.
Por que o pica-pau não sofre danos na cabeça?
Os pica-paus têm os ossos do crânio mais espessos e mais fortes do que os das outras aves. Seu bico forte é envolvido por uma membrana resistente que tem a função de regenerar células em sua ponta para mantê-lo afiado.
Pouco antes de atingir a madeira, a mandíbula inferior desliza para frente para fazer o primeiro contato com a árvore. Esse impacto inicial é canalizado para a parte inferior do crânio, mais precisamente, a base da língua, evitando assim o contato direto com o cérebro (veja abaixo, o vídeo de um pica-pau em câmera lenta).
Em comparação com outras aves, o cérebro do pica-pau é proporcionalmente menor e mais justo no interior da caixa craniana. Isso faz com que haja menos espaço e menos líquido cefalorraquidiano para que o cérebro possa “se espalhar”. Essa estratégia evolucionária evita que o cérebro se mova e atinja as paredes da caixa craniana em alta velocidade, o que causaria danos fatais.
Além disso, a superfície interna do crânio do pica-pau possui uma espécie de forração áspera e irregular, não encontrada em outras aves, que ajuda a reduzir o movimento do cérebro, quando ele está golpeando árvores.
O pica-pau possui ainda uma terceira pálpebra (chamada membrana nictitante) que se move lateralmente sobre o olho, antes de bicar, protegendo-o de lascas de madeira e funcionando como uma espécie de “cinto de segurança” que mantém o seu globo ocular no lugar.
Considerações finais
Estima-se que 99% da força de impacto produzida nas bicadas do pica-pau seja dissipada através da estrutura apresentada anteriormente. Isso faz dessa ave um modelo da natureza para pesquisas relacionadas a sistemas de absorção de choque. Contudo, como podemos ver, seu sistema de amortecimento avançado e complexo, ainda não é completamente compreendido (YOON, 2011).
Apesar dessa estrutura quase perfeita de proteção, um trabalho realizado recentemente mostrou que 8 em cada 10 pica-paus, apresentam algum tipo de sequela por conta das bicadas realizadas durante toda sua (FARAH, 2018).
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Referências
FARAH, George; SIWEK, Donald; CUMMINGS, Peter. Tau accumulations in the brains of woodpeckers. PloS one, v. 13, n. 2, p. e0191526, 2018.
MAY, Philip R A. et al. Woodpeckers and head injury. The Lancet, v. 307, n. 7957, p. 454-455, 1976.
YOON, Sang-Hee; PARK, Sungmin. A mechanical analysis of woodpecker drumming and its application to shock-absorbing systems. Bioinspiration & Biomimetics, v. 6, n. 1, p. 016003, 2011.
ZHANG, Liying; YANG, King H.; KING, Albert I. A proposed injury threshold for mild traumatic brain injury. J. Biomech. Eng., v. 126, n. 2, p. 226-236, 2004.
Notícias
Understanding potential brain damage in woodpeckers. Bird Watching, 2021. Disponível em: <link>. Acesso em: 23 set. 2021.
Cite-nos
SANTOS, Gabriel. Por que o pica-pau enrola a língua na cabeça? Ciência Mundo, Rio de Janeiro, set. 2021. Disponível em: . Acesso em: .