Um estudo recente redescobriu um dos casos mais extraordinários e intrigantes de lesão cerebral da história: o caso do Paciente M, um homem que despertou para um mundo invertido após ser atingido por um tiro na cabeça durante a Guerra Civil Espanhola, em 1938 (GARCÍA-MOLINA, 2023).
O Paciente M experimentava uma percepção distorcida da realidade, na qual pessoas e objetos pareciam surgir do lado oposto ao qual estavam realmente localizados.
Essa peculiaridade também se estendia aos seus sentidos auditivos e táteis.
Curiosamente, o Paciente M conseguia ler letras e números tanto na forma normal quanto de forma espelhada, sem qualquer distinção em seu cérebro.
Além disso, o mundo ao seu redor poderia parecer estar de cabeça para baixo, causando confusão ao observar, por exemplo, trabalhadores realizando suas tarefas de forma invertida “no teto” dos andaimes.
Outros sintomas igualmente estranhos incluíam a separação das cores de seus objetos, a percepção de objetos em triplicata e até mesmo uma forma de daltonismo.
Apesar de todos esses desafios perceptuais, o Paciente M lidava com sua condição de maneira surpreendentemente tranquila.
Durante quase meio século, o neurocientista espanhol Justo Gonzalo dedicou-se ao estudo desse caso singular, o que resultou em um trabalho que transformou significativamente a forma como compreendemos o cérebro.
Essa não foi a única vez em que uma lesão peculiar auxiliou os cientistas a desvendar os mistérios da mente humana.
Na década de 1940, Gonzalo propôs uma visão revolucionária: “o cérebro não é uma coleção de seções distintas, mas sim uma rede de funções distribuídas de forma gradativa por todo o órgão”.
Essa ideia desafiava o conhecimento convencional da época, que defendia uma visão modular e compartimentalizada do cérebro.
Para Gonzalo, as teorias modulares não eram capazes de explicar as questões levantadas pelo caso do Paciente M.
Assim, ele desenvolveu a teoria da dinâmica cerebral, rompendo com o paradigma vigente e oferecendo uma nova perspectiva sobre o funcionamento cerebral.
Ao estudar Paciente M e outros indivíduos com lesões cerebrais, Gonzalo observou que os efeitos decorrentes dessas lesões dependiam de sua localização e tamanho.
Além disso, ele demonstrou que as lesões não destruíam funções específicas, mas desequilibravam uma variedade de funções em diferentes graus, como ocorria no caso do Paciente M.
Gonzalo identificou três síndromes resultantes de lesões cerebrais: a síndrome central, que afetava múltiplos sentidos; a síndrome paracentral, semelhante à central, porém com efeitos não uniformemente distribuídos; e a síndrome marginal, que influenciava as vias cerebrais responsáveis por sentidos específicos.
Esse trabalho pioneiro, embasado em um caso extraordinário, teve grande relevância para o campo da neurociência, mas sua divulgação não alcançou a merecida proeminência.
Felizmente, sua filha, Isabel Gonzalo-Fonrodona, juntamente com outros especialistas, está atualmente divulgando os estudos sobre Paciente M e seu impacto significativo.
Atualmente, este estudo de caso único continua a desempenhar um papel importante na compreensão das funções cerebrais.
Essas investigações fornecem uma valiosa fonte de evidências científicas, complementando os estudos de meta-análises e ensaios clínicos em larga escala.
A persistência de ideias semelhantes às de Gonzalo no campo da neurociência é uma prova de que sua interpretação das lesões e da visão invertida de Paciente M estava no caminho certo.
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Referências
GARCÍA-MOLINA, A.; GONZALO-FONRODONA, I. Redescubriendo al paciente M: Justo Gonzalo Rodríguez-Leal y su teoría de la dinámica cerebral. Rev. neurol.(Ed. impr.), p. 235-241, 2023. Disponível em: <link>. Acesso em: 18 maio 2023.
Cite-nos
SANTOS, Fábio. Paciente M: O homem que levou um tiro na cabeça e acordou vendo o mundo invertido. Ciência Mundo, maio 2023. Disponível em: . Acesso em: 05 maio 2024.