A enguia é um dos animais mais fascinantes do reino animal. Ela possui um corpo longo e elástico, pode se camuflar mudando de cor, além de ter uma incrível habilidade de eletrificação.
Contudo, sua reprodução sempre foi um enigma, que atormentou pesquisadores e filósofos por anos. Neste artigo, falaremos sobre como essas incríveis criaturas se reproduzem.
O mistério milenar da reprodução das enguias
“Todas as questões importantes foram resolvidas, exceto o enigma das enguias”, disse o biólogo alemão Max Schultze em seu leito de morte em 1874.
Isso porque, até aquele momento, ninguém tinha visto enguias se acasalando, nem identificado seus órgãos reprodutivos. Isso incomodou os pensadores, desde de a antiguidade, pois a enguia era um ser que simplesmente surgia do nada!
O filósofo grego Aristóteles, por exemplo, após procurar em vão pelos órgãos reprodutivos do peixe, concluiu que “a enguia não é macho nem fêmea e logo não pode gerar nada”. Diante disso, ele estabeleceu que a enguia era uma das poucas criaturas que devia sua existência não à reprodução sexuada, mas à geração espontânea. “Assim como as moscas emergem do esterco, as enguias surgem espontaneamente da lama e do solo úmido”.
Devido às dificuldades técnicas para se investigar corretamente o animal, muitos pensadores contemporâneos seguiram as ideias de Aristóteles até pouco tempo.
A ideia de que as enguias podiam existir sem a reprodução sexual se popularizou na Europa o que tornou esses peixes muito populares na Quaresma (40 dias do calendário cristão, que são dedicados à preparação espiritual para a Páscoa, onde os desejos sexuais devem ser suprimidos). Acreditava-se que o consumo de carnes vermelhas aumentava a luxúria, enquanto que os peixes não estimulavam a libido da mesma maneira. Entre os peixes preferidos, as enguias eram o prato perfeito, pois eram assexuadas e adequadas para se manter o controle dos desejos.
No entanto, em 1876, o ainda jovem Sigmund Freud, conhecido hoje como “o pai da psicanálise” mudou tudo isso. Enviado por seu professor de biologia Carl Claus para a estação de pesquisa em biologia marinha de Trieste, Freud dissecou 400 enguias até finalmente encontrar os testículos do peixe.
Mas como Freud se envolveu neste assunto? Bem, na época o enigma das enguias era um tópico acadêmico badalado, e o jovem Freud tentava compreender a associação dos órgãos genitais com o comportamento animal. Curiosamente, Freud não publicou sua descoberta na época.
Vinte anos mais tarde, em 1896, o cientista italiano Giovanni Grassi resolveu criar uma estranha criatura marinha em um aquário, chamada Leptocephalus brevirostris. Para sua surpresa, a criatura se transformou em uma enguia e o cientista então concluiu que o animal capturado se tratava de uma larva do peixe.
Hoje sabemos que o ciclo de vida das enguias consiste de várias fases. Contudo, as mudanças físicas durante essas fases são tão significativas que os pesquisadores antigos achavam que se tratavam de espécies diferentes.
Como as enguias REALMENTE se reproduzem?
As enguias possuem uma forma única e complexa de reprodução, que envolve uma série de mudanças morfológicas e comportamentais. Embora existam muitas espécies diferentes de enguias no mundo, todas elas compartilham as mesmas características quando geram seus descendentes.
Os europeus antigos nunca viram a reprodução das enguias, pois esses animais só desenvolvem seus órgãos sexuais, quando estão no oceano, migrando para as regiões de desova, bem próximos da época do acasalamento.
As enguias são semélparas, ou seja, vivem para se reproduzir apenas uma vez, pois morrem após a reprodução. No entanto, esses animais esperam por condições favoráveis para migrarem e se reproduzirem.
As enguias só começam a se desenvolver sexualmente quando atingem a maturidade, o que ocorre entre 2 e 10 anos de idade. A enguia europeia, por exemplo, pode se reproduzir a partir dos 7 anos, porém a mais velha dessa espécie encontrada na natureza tinha 85 anos.
Quando elas chegam neste momento de suas vidas, migram para águas salgadas, em regiões costeiras mais quentes. Essa é uma das jornadas mais longas e perigosas conhecidas realizadas por um peixe, pois esses animais precisam nadar longas distâncias e enfrentar uma série de obstáculos, como cascatas, usinas hidrelétricas e poluição. Durante esse período, as enguias começam a desenvolver seus ovários e testículos, preparando-se para o acasalamento.
No acasalamento, os machos e as fêmeas se encontram e se unem para fertilizar os ovos. É importante destacar que a fecundação dos ovos é externa, ou seja, os espermatozoides dos machos fertilizam os ovos da fêmea enquanto eles estão ainda fora de seu corpo.
Após o acasalamento, a fêmea começa a liberar seus ovos adesivos, que são cobertos por uma espécie de gelatina protetora. Esse processo pode levar horas ou até dias, dependendo da espécie. As enguias japonesas (A. japonica) podem depositar entre 2 milhões e 10 milhões de ovos.
A maioria das espécies de enguias não tem cuidados parentais.
Após a eclosão dos ovos, as enguias iniciam suas vidas na fase larval chamada de leptocefálicos. Os jovens larvas de enguias vivem somente no oceano e consomem pequenas partículas chamadas de neve marinha.
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Referências
PALSTRA, Arjan P.; VAN DEN THILLART, Guido EEJM. Swimming physiology of European silver eels (Anguilla anguilla L.): energetic costs and effects on sexual maturation and reproduction. Fish Physiology and Biochemistry, v. 36, p. 297-322, 2010. Disponível em: <link>. Acesso em: 8 fev 2023.
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Cite-nos
SANTOS, Gabriel. Afinal, como as enguias se reproduzem? Ciência Mundo, Rio de Janeiro, fev 2023. Disponível em: . Acesso em: .